O impacto do coronavírus no varejo físico despertou nos varejistas a urgência da digitalização dos negócios.
A pandemia da COVID-19 catalisou um processo que já estava em curso, em menor e maior grau, no Brasil e no mundo: a mudança dos hábitos de consumo. O processo aconteceu por onde o coronavírus passou e seguiu a mesma equação. O medo e a incerteza diante da doença fizeram com que as pessoas aumentassem as compras de itens básicos de saúde e alimentação, mas, por outro lado, a recomendação foi para que as pessoas não saíssem de casa. O resultado foi a explosão do e-commerce.
A Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) registrou esse efeito no Brasil já na segunda semana de março. “Desde quinta-feira, dia 12 de março, algumas lojas virtuais chegaram a registrar um aumento de mais de 180% em transações nas categorias Alimentos e Bebidas e Beleza e Saúde”, afirma Mauricio Salvador, presidente da entidade.
Dados da plataforma de inteligência e pesquisa da agência NZN, mostram que 49% dos brasileiros passaram a reconsiderar a maneira como fazem seus gastos depois da chegada da Covid-19. Desses, 71% afirmam que pretendem aumentar o volume de compras online.
Mas se o e-commerce parece ser o caminho mais seguro para o varejo nesse momento de crise, um outro dado mostra que a transição das empresas carece de agilidade. Pesquisa recente do Sebrae mostra que 73% das pequenas empresas não estão presentes na Internet. O cenário assusta, na medida em que, no Brasil, 99% dos estabelecimentos são de micro e pequenas empresas (MPE), responsáveis por 52% dos empregos com carteira assinada no setor privado.
Para a gestora de Soluções do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Louise Alves Machado, a presença digital não é mais uma opção para as empresas de varejo. “Essa é uma realidade que se impõe após as mudanças nos hábitos de consumo provocados pela internet, smartphones e redes sociais”, diz Louise.
O relatório NeoTrust, que analisa o varejo digital trimestralmente, mostra que a crise passou longe do e-commerce brasileiro no ano passado. As vendas realizadas de janeiro a dezembro de 2019 somaram faturamento de R$ 75,1 bilhões, alta nominal de 22,7% em relação ao ano de 2018.
Apesar disso, o consumo virtual no país ainda apresenta um crescimento tímido em relação a outros países. Um exemplo é a penetração do e-commerce no mundo: 30% do volume no mercado chinês, 18%, no inglês, 12%, no americano e apenas 5%, no brasileiro. “O comércio eletrônico cresce de maneira vertiginosa e quem não se atualizar ficará para trás”, afirma Louise.
Mudar para seguir
Lourdes Ferolla é proprietária da DiFerolla, uma das principais lojas de acessórios femininos do Espírito Santo. Nessas três décadas, a marca chegou a ter dez pontos físicos. Há sete anos, após condições adversas do mercado e da economia, foi reduzida a quatro pontos de venda. “Enfrentamos um período que foi prejudicial para a empresa, associado a uma gestão inadequada dos negócios”, diz a empresária. O revés obrigou Lourdes a seguir o caminho da digitalização das suas operações. Entre idas e vindas, ela apostou no e-commerce, criou perfis em redes sociais e passou a ter outra postura diante dos seus clientes.
Hoje, a DiFerolla é um case de sucesso, com clientes em países como Tailândia, Japão, Canadá e Chile. “A ideia de partir para a digitalização veio da minha filha, que sugeriu um caminho que sabíamos existir há algum tempo, mas que não considerávamos uma questão relevante”, explica Lourdes, que mantém páginas na internet, no Instagram, Facebook e ainda tem presença em uma plataforma de e-commerce. “Eles fizeram o dever de casa. Têm presença digital e foco no treinamento de equipe. É o que se espera no atual momento do varejo”, diz Louise, que orientou a DiFerolla durante a transição.
Mas nem todos fazem o processo corretamente. A gigante americana Macy´s é um exemplo. Em março, a marca fechou 125 endereços e demitiu dois mil funcionários por não ter se adequado ao novo modelo. “A transformação digital pegou muita gente de surpresa. Hoje, existe, inclusive, a diminuição da vida útil das empresas, que caiu de 60 para 18 anos”, explica Fábio Miranda, especialista da Hi Platform, plataforma de relacionamento e experiência do consumidor.
Mito do alto custo
A grande maioria dos varejistas brasileiros parece estar atenta ao que acontece ao seu redor. A pesquisa Desafios do Varejo, conduzida em agosto do ano passado pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), mostrou que nove em cada dez empresários do varejo garantem acompanhar as novidades do setor. No entanto, os mesmos empresários seguem adotando estratégias de gestão ultrapassadas, baseadas, sobretudo, na prática e vivência do dia a dia.
A explicação para essa paralisia costuma ser financeira. Para a maioria dos entrevistados, a implantação de tecnologias esbarra nos custos da transição digital. Essa é uma percepção dos empresários refutada pelos especialistas. “Alegar falta de recursos para digitalizar uma loja não é uma desculpa plausível”, diz Miranda. “Existem muitos caminhos para viabilizar um negócio na internet, sem que seja necessário um investimento muito alto”.
Segundo o técnico da Hi Platform, o que falta ao empresário brasileiro é um pouco de criatividade. Ele cita experiências como os marketplaces, que são formas baratas e eficientes de encontrar um público que só consome no universo on-line. “Não é necessário nenhum grande investimento ou conhecimento técnico para aderir a esse sistema”, relata.
Miranda explica que existem startups cujo negócio é fazer parcerias com pequenos e médios empresários que não sabem como se movimentar nesse mundo do varejo digital e que as redes sociais também são muito eficientes. “WhatsApp, Facebook e Instagram são redes praticamente gratuitas. Com R$ 90 por mês, é possível contratar ferramentas que conseguem traçar o perfil do público da marca. Não existe desculpa para não se adaptar”, explica.
No caso da DiFerolla, o investimento mais caro da transição digital foi a criação de uma página na internet para garantir o espaço virtual da loja. “A manutenção dessas páginas é feita pela minha filha, que passou por diversos cursos, muitos deles gratuitos”. Ela se refere aos serviços prestados pelo Sebrae e entidades de classe, como a Federação das Indústrias do Espírito Santo, em que é possível encontrar qualificação a preços acessíveis e, muitas vezes, gratuita.
Da tela para as ruas
Engana-se também quem acha que o futuro do varejo se limitará às telas de celular, computadores e tablets. “Essa é outra ideia distorcida. O comércio on-line não vai suplantar o comércio físico”, afirma Louise, que trabalha com a orientação de pequenas e médias empresas. “As marcas que estão se sobressaindo no varejo estão presentes nas duas formas de comércio. O esforço que deve existir é para que não haja fricção entre um e outro”.
Louise se refere a um novo modelo de ponto de venda cujo conceito atende pelo nome de phygital, uma combinação das palavras em inglês para físico e digital. O exemplo mais acabado desse modelo no país é o Magazine Luiza, rede varejista fundada em 1957, no interior paulista, que sempre foi associada às lojas de rua. Desde 2017, a companhia passou a investir pesado em sua transformação digital. Ao contrário da Macy’s, soube fazer a transição de forma harmônica com seus pontos físicos.
Hoje, a empresa adotou um modelo de venda que mistura o e-commerce com lojas físicas e permite que o cliente resgate produtos comprados on-line em pontos físicos de venda. São 1.113 lojas espalhadas pelo Brasil. “A gente fez as coisas certas na hora certa. Nós acreditamos numa proposta de não separar o .com das lojas físicas. Sempre pensamos que era uma coisa só”, diz Luiza Helena Trajano, CEO da rede.
“O Magazine Luiza investiu na identificação do seu público, omnichannel, boas experiências de compra, integração do físico com o digital e um autosserviço que resolve até 70% dos problemas do cliente”, diz Miranda.
Muito além da tecnologia
Outra questão que muito varejista não entendeu é que o comércio não mudou apenas com o uso da tecnologia. A inovação no varejo passa pela forma como ela se apresenta. Existem empresas que conseguem se reinventar e se reposicionar, identificando uma missão, um propósito muito claro para ela, os funcionários e consumidores. “Acredito que o primeiro passo para quem quer a adaptação aos novos tempos passa por aí. O negócio tem que ser empático para quem trabalha e para quem consome”, diz Louise.
Essa postura de valorizar o material humano foi a base de todas as discussões na maior feira de varejo do mundo, a NRF 2020. Nas palavras de Kevin Johnson, CEO da Starbucks, “em dez anos, o varejista de sucesso deverá ter presença física e digital, com um bom relacionamento com os seus clientes. Esses vão sair ganhando o jogo!”.
Para que a relação de uma empresa e seus clientes se estreite, a tecnologia, com suas ferramentas de captação de dados, é importante, mas não absoluta. O chamado propósito, que mostra a preocupação da empresa com questões sociais e de diversidade, por exemplo, é uma maneira de falar com o novo consumidor. “Incluir pessoas que estão à margem do mercado por questões sociais, ou estéticos, por exemplo, é tão inovador e eficiente quanto qualquer software de gestão”, explica Louise.
Liliane Rocha, CEO da Gestão Kairós, consultoria de Sustentabilidade e Diversidade, este momento de crise epidemiológica e restrições globais é crucial para as empresas mostrarem seu compromisso com os preceitos e práticas de sustentabilidade, responsabilidade empresarial e diversidade.
“O cenário atual desta crise é fundamental para pensarmos e valorizarmos as pessoas. Não se trata apenas da nossa saúde física, de um possível adoecimento, mas sim da nossa saúde psíquica, mental, emocional”, diz Liliane.
Como diz a dona da DiFerolla, o desafio de verdade está em olhar diferente a maneira de fazer comércio e de lidar com as pessoas. “Achamos que todos devem estar apaixonados pela nossa marca, funcionários e clientes. Só assim poderemos proporcionar uma experiência de compra agradável. Para nós, o cliente deve sair da loja melhor do que entrou, mesmo que não tenha comprado nada”. Isso, sim, é inovação barata.